Lição 01 — “Para que vendo, vejam, e não percebam” (29/06-05/07)
Por Elias Batista Jr. (pseudônimo)
A “parábola do semeador” (Mc 4.1-20) não é sobre o semeador, mas sobre a relação entre sementes e solos. Ela ensina algo sobre os sucessos e fracassos do ministério de Jesus ao apregoar o Reino de Deus. O leitor não precisa se esforçar para entender que o “semeador” é o próprio Cristo, e a semente a “palavra”, isto é, o evangelho, que ele pretendia inculcar no coração dos ouvintes. Mas até hoje leitores costumam negligenciar uma afirmação escandalosa de Cristo no verso 12: ele disse ensinar por parábolas “para que não se convertam, e lhes sejam perdoados os pecados”.
Pra refletir a respeito do verso é preciso enfatizar a situação histórica em que viviam os ouvintes, e a implicação de pregar a “vinda do Reino de Deus”. Afirmar o início de um reinado de paz, justiça e prosperidade aos judeus antipatizava com a realidade do Império Romano, que perseguia e assassinava movimentos de insurreição.1 Foi assim com Judas, o Galileu, Simão de Pereia, Teudas, entre outros. Se um intitulado “messias” brota da classe subalterna, acolhe multidões e proclama um novo mundo, ele se tornará alvo de toda sorte de repressão política. Afinal, no imaginário judaico, esse indivíduo protagonizará a destruição dos impérios mundiais para a concretização de um reinado eterno de Deus sob a tutela de seu representante.
Essa expectativa político-escatológica envolvia todos os que seguiam ou perseguiam Jesus. E Marcos deixa isso claro ao colocá-lo em situações em que as multidões o “oprimiam” (3.7-12; 4.35–5.43; 6.32-56), a ponto de forçá-lo a discursar de um barco. Embora, para as autoridades, a implantação do Reino de Deus fosse uma ameaça a seus privilégios, para a ralé era uma esperança acalentada; os milagres promovidos por Cristo alimentavam ainda mais a expectativa, que, desta vez, prometia ser alcançada, dada a autoridade de sua pregação e a reverência dos próprios demônios!
Mas o funcionamento do Reino de Deus parecia distinto da esperança imediata dos ouvintes. A divulgação de um reinado de justiça e prosperidade foi comparada à atividade de um semeador, que incorre por diferentes percalços ao praticar a agricultura. Em primeiro lugar, (1) a luta por um novo mundo é como a semente que cai pelo caminho, e é pisoteada ou comida pelos pássaros (v. 4; ver 8.5). Jesus explica que a mensagem do reino é arrancada do coração de alguns por ação de Satanás, como um “pássaro”. Trata-se de um grupo de pessoas que, a despeito da miséria, não cogitavam a implantação de outra realidade senão a romana. Eles não ligavam o discurso de Cristo às suas convicções políticas por conta de influências satânicas.2
O seguinte grupo (2) chega a receber a proposta “com prazer” (v. 16). Mas essas sementes não têm raiz, porque nascem num contexto de hostilidade, entre pedregais, sem profundidade para seu desenvolvimento. Elas crescem, mas logo secam com a violência do sol. Jesus explica que alguns até aceitam a ideia de implantar um novo mundo, mas arregam em face às perseguições aplicadas pelo império (v. 17; ver Mt 5.10, 44). Não por acaso: proclamar o reinado de Deus é, como vimos, cutucar a onça com vara curta; é assumir criticamente a ineficiência da administração romana e perpetuar a ideia – subversiva – de um reino alternativo. Retaliações e perseguições nesse contexto são inevitáveis.
Um terceiro grupo de sementes cai entre espinhos e é sufocado por eles (v. 7). Eles “ouvem” a palavra, ou seja, se conscientizam da necessidade de resistir à opressão romana, mas são impedidos pelos “cuidados do mundo”, as riquezas e as ambições (v. 19). Dificilmente um rico vai querer lutar por um reino que o obrigue a abdicar de seu patrimônio e privilégios (Lc 6.24; 18.23; Mt 19.23): “é mais fácil passar um camelo pelo fundo de uma agulha, do que entrar um rico no Reino de Deus” (Mc 10.25). Converter-se ao evangelho implicaria ser como Zaqueu: doar a metade de seus bens e restituir quatro vezes mais a quem foi defraudado (Lc 19.8). Isto porque a população rica se beneficiava do sistema de morte imputado pelo império – a “pax romana” – para o seu próprio benefício e para a miséria de seus subordinados. O Reino de Deus exige outra lógica, outro sistema para a manutenção da vida.
Entre o discurso e a explicação, Jesus nos obriga a distinguir dois grupos: aqueles que possuem o privilégio de entender o “mistério” do reino (v. 11), e os que não o compreendem. Falhamos ao pensar no termo “mistério” como um segredo esotérico, velado do conhecimento humano. O termo grego μυστήριον (mystērion) ocorre como tradução do aramaico רָז (rāz), comum à literatura apocalíptica da época.3 Ele faz referência a um insight sobre os acontecimentos que envolvem o passado, o presente e o futuro (ver Dn 2.18-19); isto é, o correto entendimento dos eventos históricos. Nos textos de Qumran, o gênero destinado ao ensino (parábolas, ditados, provérbios etc.) costuma ocorrer em paralelo ao apocalíptico.4
Por isso, a grande sacada oferecida pela parábola é que a implantação do Reino de Deus não se resume a uma expectativa futura: ela passa por um processo de convencimento, e depende da resposta dos ouvintes à possibilidade de realizar um novo mundo. Alguns são indiferentes; outros a aceitam, mas são impedidos pela repressão política; e ainda outros preferem um sistema falido para preservar seus privilégios. O sucesso para a implantação do reinado de paz, justiça e prosperidade depende dos que creem na utopia, confrontam a repressão e destinam os bens materiais para o benefício da comunidade. Esta é a semente que frutifica (v. 20).
Ainda que o convite seja entregue a todos, ele possui melhor recepção entre os “de dentro”, os que andavam com Cristo e aprendiam dele (v. 10; ver Mc 4.34; 9.28; 13.3; 10.10). Mas “os de fora” (v. 11, ἐκείνοις τοῖς ἔξω) não representam os ouvintes à beira do mar: eles são provavelmente os que reprovavam e perseguiam Jesus, como alguns de sua família (Mc 3.31-32, que insistem em estar “fora”, ἔξω) e as autoridades judaicas,5 com quem ele se comunicava por parábolas para suavizar a radicalidade de seu discurso e amenizar a repressão. Para eles, o discurso de Jesus toma a forma ríspida da tradição profética, que condenava as autoridades pela dureza de seus corações, condenando-os à sua própria sorte. Eles ouvem, mas não entendem; veem, mas não percebem (ver Is 6.9-12; Jr 5.21; Ez 12.2).
A parábola das sementes é introduzida pelas expressões “escute” (Ἀκούετε, “akouete”) e “veja” (ἰδοὺ, “idou”), incomum à redação de Marcos.6 No entanto, a Lição da Escola Sabatina desta semana não ouve e não vê a urgência da mensagem. Ela é vaga quando cita os “frutos” de uma semente, e não consegue aplicá-los às necessidades da vida real. Além disso, ela ensina que o terceiro solo (envenenado pela ganância e pela ambição por riquezas) diz respeito às “dificuldades da vida cristã”, ao apego às “coisas deste mundo”. Essa explicação é implementada na lição de quarta-feira, que insiste na ideia de que o ambiente e a cultura afetam a integridade do “solo”, e impedem o recebimento do ensino de Cristo.
Dessa forma, o estudo desta semana não apenas evita falar sobre o acúmulo de riquezas: ele “protege” o patrimônio das elites e dispensa a necessidade de abdicar à ganância pelo dinheiro. Ela não critica o sistema de acumulação de capital responsável pela miséria de multidões; e não consegue entender o “mistério” do Reino de Deus, a promoção de um reinado de paz, justiça e prosperidade. No final, o estudante é incentivado a não se “infectar” com a cultura; a lição se contenta em cultivar sementes em um solo espinhoso, investindo mundos e fundos em um evangelho infrutífero, indiferente à urgência do Reino de Deus.
Ver HORSLEY, Richard A. Jesus e o império: o reino de Deus e a nova desordem mundial. São Paulo: Paulus, 2014.
A mesma figura de Satanás como “pássaro” a raptar e comer sementes ocorre em Jubileus 11.11 e Apocalipse de Abraão 13.3-7.
GUELICH, R. A. World Biblical Commentary: Mark 1–8:26. Grand Rapids: Zondervan, 1989, v. 34A.
CARMO, Felipe. Sabedoria na Bíblia Hebraica: Breve introdução ao gênero literário sapiencial. São Paulo: Fonte Editorial, 2023, p. 184-201.
GUELICH, R. A. World Biblical Commentary: Mark 1–8:26. Grand Rapids: Zondervan, 1989, v. 34A.
Idem.